O Punctum de Barthes e o álbum de fotografia da família Narciso Costa (2019)
Residência Artística - Galeria de Arte Banco de Portugal
Roland Barthes (1915-1980) foi um crítico literário, teórico, filósofo, linguista e semiólogo. No seu livro “A Câmara Clara” (1980), escrito no período de luto da morte da sua mãe, Barthes formula uma reflexão que viria a reunir, num único texto, todos os temas que o rondavam e o feriam — fotografia, lembrança e morte. Na sua análise, a determinada instância, surge o Punctum: “O punctum de uma fotografia é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere). (…) como um quadro vivo, a figuração da face imóvel e pintada sob o qual vemos os mortos. Fotografam-se coisas pra expulsá-las do espírito. As minhas histórias são uma maneira de fechar os olhos, (…) deixar o detalhe remontar sozinho à consciência afetiva.” (Barthes, 1980) Nesta residência artística é trabalhada a produção de sentido da imagem fotográfica na sua desconstrução enquanto documento de memória afetiva. Questiona-se aqui se o significado do conteúdo afetivo e documental, da imagem em si, poderá passar a ser apenas detentor de um valor estético e imaginativo. O retrato deixa de ser retrato? Pela sua desconstrução e reinterpretação imagética resultará apenas numa experiência estética, sem a sua carga afetiva original? O processo de desconstrução e construção das imagens foi realizado a partir do álbum fotográfico de família de Narciso Costa, doadas pela filha de Narciso, Manuela Costa, ao m|i|mo – museu da imagem em movimento. Tentei perceber se esta questão da vida e morte, patente em fotografias de 1910-20 da minha família portuguesa, e que, desde a minha infância, me criaram alguma angústia e sensação de nostalgia de certo modo dolorosa, seria apaziguada pela transformação das imagens, pelo processo de alteração, quer da própria imagem, quer do meio de impressão manual em suportes não convencionais. Descobri que, para mim, não se retirou qualquer carga afetiva transparente nestas memórias fotográficas. Pelo contrário, interiorizei também essa dimensão afetiva: aquelas pessoas passaram também a fazer um pouco parte de mim. Mas, surpreendentemente, apaziguaram-me. Primeiro porque fui testemunha de vidas que, pelo que percecionei, foram felizes. Depois, porque percebei que as nossas vidas são uma construção de redes. A partir da pessoa de Narciso Costa, tive uma ligação, ainda que visual, de muitas outras vidas a que a ele se uniram, direta ou indiretamente. Esta rede torna-se imortal. O nosso contacto com outros, fugaz ou mais permanente, torna-nos imortais, na medida em que a existência de cada um de nós está e fica ligada às vidas de com quem temos contacto ao longo da vida, sob várias formas. Inclusive pelo facto de alguém, um dia, pegar nessas imagens, estudá-las, selecioná-las e expô-las num espaço público. Também assim as vidas das pessoas que fazem parte destas memórias fotográficas se imortalizam e continuam, possivelmente, a um remontar pessoal de uma consciência afetiva.